As decisões do maior caso do judiciário gaúcho, o histórico júri da boate Kiss, podem ganhar novos contornos na data de hoje ou seguirem mantidas como estão. É possível que as penas dos condenados sejam mantidas, reduzidas ou ainda que o júri seja anulado, para a realização de um novo. Não há possibilidade de as penas serem elevadas. Isso porque, a partir das 14h, ocorre o julgamento dos recursos de apelação dos condenados do processo criminal pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS). O Ministério Público não entrou com recursos.
As defesas de Elissandro Sphor, Mauro Hoffmann, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão tentarão o redimensionamento das penas de prisão e a anulação do júri, que ocorreu entre 1º e 10 de dezembro de 2021. Os quatro foram condenados pelo Conselho de Sentença do Tribunal do Júri por 242 homicídios e 636 tentativas de homicídio por dolo eventual. Todos estão presos.Esse cenário pode mudar, ou não, a partir do entendimento dos desembargadores Manuel José Martinez Lucas, que também é o relator dos recursos, José Conrado Kurtz de Souza e Jayme Weingartner Neto.
Conforme Marcelo Peruchin, especialista em Ciências Criminais e pós-doutor em Direito Penal, os recursos de apelação são cabíveis para qualquer sentença no Brasil, inclusive, contra sentenças das decisões do Tribunal do Júri. Segundo o especialista, são hipóteses de apelação: nulidade do processo ou do julgamento; debate sobre a dosimetria da pena (tempo de prisão) e possibilidade da desconstituição do julgamento com um novo júri na hipótese da decisão ser contrária à prova dos autos:– Temos de ter cuidados éticos quanto à apreciação dessa matéria, pois não dominamos o processo como um todo, nos seus detalhes. Em tese, neste caso, eu creio que o cerne do debate em um primeiro momento será a manutenção ou não do julgamento popular. A primeira análise que será feita pelo Tribunal é se o júri deverá mantido ou não, especialmente sobre dois prismas: se há ou não nulidade que deva ser decretada e, em segundo momento, se a decisão é conforme a prova dos autos ou não. Isso significa que a dosimetria das penas, se proporcionais ou não, ficará para um segundo momento.Já Alexandre Wunderlich, professor de Direito Penal na PUCRS e do mestrado do Instituto de Direito Penal (IDP) em Brasília, é crítico quanto ao dolo eventual.– O júri foi levado a decidir uma questão extremamente técnica, se o caso configura dolo eventual ou culpa consciente. O júri é leigo e, em meu juízo, foi induzido em erro por uma acusação absurdamente equivocada. Agora, o Tribunal pode anular o processo ou reduzir as penas aplicadas para os patamares legais tradicionais e, ainda, deliberar sobre a soltura dos acusados. Na forma em que foram condenados, não houve justiça. No máximo, houve culpa, jamais dolo, pois, no caso, isto é tecnicamente impossível. Penso que o Tribunal examinará o caso com isenção e, seja qual for o resultado, cabe recurso das partes aos tribunais superiores – diz Wunderlich.
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Caminhada recursal
Os recursos não se encerram, necessariamente, após a decisão de hoje. Dependendo do julgamento, caso a votação seja 2 a 1 desfavorável às defesas, cabem novos recursos, os chamados embargos infringentes, a serem julgados pelas 1º e 2º Câmaras Criminais, que constituem o Grupo Criminal do TJ-RS. Dessa decisão, ainda cabem outros recursos – especial para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou extraordinário para o Supremo Tribunal Federal (STF).
Novo júri?
Em caso de anulação do júri, o MP ainda poderá recorrer ao STJ. Caso contrário, o TJ-RS determinará uma nova data para um novo júri com um novo Conselho de Sentença e novos sete jurados.
Caso Kiss
O incêndio aconteceu em 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria. Morreram 242 pessoas e outras 636 ficaram feridas. O julgamento do processo foi transferido para a Capital por decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ/RS). Inicialmente, o desaforamento (troca de cidade) foi concedido a três dos quatro réus: Elissandro Spohr, Mauro Hoffmann e Marcelo de Jesus. Luciano Bonilha Leão foi o único que não manifestou interesse na troca (o julgamento chegou a ser marcado em Santa Maria) mas, após o pedido do Ministério Público (MP), o TJRS determinou que ele se juntasse aos demais.Os quatro réus foram condenados no júri presidido pelo juiz Orlando Faccini Neto. O julgamento durou 10 dias e ocorreu no Foro Central I, em Porto Alegre, em dezembro de 2021. Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão, vocalista e roadie da banda, que tocava na boate na noite do incêndio, tiveram pena de 18 anos. Os sócios da casa noturna, Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr tiveram pena de 19 anos e 6 meses e de 22 anos e 6 meses, respectivamente. Eles respondem por 242 homicídios e 636 tentativas de homicídio por dolo eventual.
O que diz a AVTSM
– Acreditamos que a soberania dos vereditos deve ser respeitada para garantir o estatuto de Justiça, pois as decisões do júri foram conduzidas exemplarmente durante os 10 dias de julgamento e representam a decisão da sociedade. A associação luta continuamente pelo direito à justiça e à memória para que a impunidade não tenha lugar, responsabilizando cada um por sua devida responsabilidade sem privilegiar o julgamento moral, mas sim baseado nos fatos. É nisso que a verdade se sustenta, nos fatos que foram apurados, documentados, presenciados via testemunhos, perícias e laudos que dão materialidade às causas da tragédia.
O que diz o Ministério Público
– O Ministério Público confia na lisura de todo julgamento, realizado de forma imparcial, sem intercorrências, não tendo ocorrido qualquer nulidade. A sociedade, de forma isenta, deu uma resposta justa e correta para os graves fatos ocorridos, que deve ser respeitada.
As defesas
Cada uma das partes terá 10 minutos para sustentação oral. Veja o que dizem os advogados de cada réu do processo.Elissandro Spohr: por meio da assessoria de Comunicação, o advogado Jader Marques informou que solicitará pedidos de anulação do júri por falhas do juízo na condução do processo ou anulação/redução da pena
Luciano Bonilha Leão: – Temos alguns pedidos pontuais. O principal é a nulidade do júri, pois o assistente de acusação mencionou o silêncio dos réus. Isso é totalmente proibido ou vedado por parte do MP ou da assistência de acusação. Usar esse argumento contamina os jurados. No Caso Bernando foi anulado o júri para o pai pela mesma câmara criminal; segundo, o Tribunal do Júri, em que pese às emoções estarem à flor da pele e entendemos a tristeza das famílias, não é lugar para oração ou para modificar a dinâmica do plenário como por exemplo se darem as mãos e orarem. Isso contamina o Conselho de Sentença, e o juiz-presidente deveria ter evitado isso; na primeira interferência que fizeram à minha pessoa, que foram três, ele (o juiz) deveria ter fechado o plenário, e o júri continuar de portas fechadas, como ele faz em outras vezes, que não o Caso Kiss; também houve um exagero na formulação dos quesitos e excesso de linguagem, o que deve ser objetivo. E evidentemente, pediremos que a pena-base seja redimensionada, pois foi absurda – defende advogado o Jean de Menezes Severo.
Marcelo de Jesus dos Santos: conforme a advogada Tatiana Borsa, os pedidos de nulidade que serão apresentados são o excesso de linguagem pelo magistrado; sorteio dos jurados com prazo não estabelecido em lei e conhecimento da lista antecipada; disparidade de armas, referindo-se à mídia 3D utilizada pelo MP sem que as defesas pudessem ter acesso antes; o silêncio dos acusados; manifestação da plateia; ausência do crime culposo; negligência e ausência antecipada de quesitos e a parcialidade do juiz.
Mauro Hoffmann:
– Nós temos um pedido de nulidade por três circunstâncias que aconteceram no júri. Uma delas foi a exploração por parte do assistente de acusação do direito ao silêncio dos réus, pelo menos ao silencio parcial. A segunda, diz respeito, ao Mauro, de uma inovação por parte do Ministério Público. O MP acusou o Mauro durante nove anos de ter feito reformas, de ter autorizado o uso de artefatos, de ter determinado algumas melhorias e quando foi confrontado, o promotor mudou a linha e disse que, como sócio, ele se omitiu de ter impedido. Ou seja, foi acusado inicialmente de condutas ativas e lá no meio do julgamento o promotor muda para uma conduta omissiva. Isso não pode, a acusação tem que manter a mesma linha o processo inteiro; e a terceira nulidade diz respeito a um quesito que o juiz fez na hora do julgamento e que não correspondia a literalidade do que foi acusado pelo MP, e a técnica da elaboração dos quesitos, que devem ser feitos da mesma forma que foram acusados aos réus no início do processo. Alternativamente, se a opção for por não anular o julgamento, então, que se redimensione a pena porque dos cinco elementos que o juiz utilizou, quatro deles são flagrantemente inadequados – sustenta o advogado Bruno Seligman de Menezes
(Colaborou Denzel Valiente)
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